quinta-feira, 19 de abril de 2012

Carta da Corcunda ao Serralheiro

Senhor António:
O senhor nunca há-de ver esta carta, nem eu a hei-de ver segunda vez porque estou
tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo
abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela
quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora
que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro
andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que
é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque
não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho
pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo
ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o
senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gostasse das
pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que
gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.
Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem
maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho
medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso
é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são
más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa
da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a
ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser
corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz
dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu
nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse
nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que
pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da
gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que
faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como
eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão
aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu
também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer,
que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua
quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim
e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um
estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de
modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando
me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de
Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não
podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu
depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque
ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que
explicar porque é que estive distraída.
Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não
era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia
que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como
nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas
com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente,
o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma
espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse
paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a
aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero
como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem
me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para
os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair
pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se
calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.

(…)
- e enfim  porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta  carta?
O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser
ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter
um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta
murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não
ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm
baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para
as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há
artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar
as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo
como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a
pintura é fresca por causa da água.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu
gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais,
que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o
senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor  se
meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque
não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e
eu não mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de
gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vêm, valha me
Deus.
O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de
automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem
isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem
não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com
toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de
encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso
porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar
no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu
desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim
para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida. Aí tem e estou a chorar.
Maria José
-
Este texto foi publicado originalmente em:
Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa, Lisboa, Estampa, 1990

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